quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Rhythm and blues



"É, engraçado, ás vezes a gente sente, e fica pensando
Que está sendo amado, que está amando, e que
Encontrou tudo o que a vida poderia oferecer
E em cima disso a gente constrói os nossos sonhos
Os nossos castelos, e cria um mundo de encanto onde tudo é belo
Até que a mulher que a gente ama, vacila e põe tudo a perder
E põe tudo a perder..."


Poucas são as cinebiografias que fazem jus aos grandes mitos que julgam eternizar através da imagem. Talvez porque muitas produções partem do pressuposto de visões preestabelecidas sobre tais personagens, e não existe um real interesse em entender as figuras num ideal próprio. Muitas biografias perdem o sentido quando projetadas pela encenação. Um caso particularmente recorrente no cinema comercial brasileiro, que ao longo dos anos vem encontrando nos grandes nomes da história do país e, especificamente aqui, da música popular brasileira uma forma de (re)experimentar sua representação histórica.

Tim Maia não vai ser o primeiro, nem o último grande mito da nossa música a receber uma homenagem pau mole nas telas. Baseado num livro de Nelson Motta (e que mais parece uma versão estendida de seus comentários no Jornal da Globo), o longa de Mauro Lima é mais um registro bem intencionado sobre a vida de uma personalidade ao molde mais quadrado do significado da palavra. Mistura de documentário com drama ficcional, intercalando algumas das músicas mais famosas do cara, o filme é uma espécie de túnel do tempo musical, que está muito mais preocupada em contemplar uma genialidade, sem em nenhum momento tentar entende-la, ou, de fato, experimenta-la. Se utilizando do velho recurso da narrativa em off, o filme transforma seu herói num mero coadjuvante de sua própria história. Tal didática não apenas mostra que Lima pouco entende da persona de Maia, como também não sabe muito bem o que fazer com ela. E essa estranheza entre gênio e seu revitalizador é o elo que leva o filme a se estender por longos 140 minutos num ritmo nada proveitoso, se desdobrando através de clichês de colunas musicais que pouco se interessam na música, mas muito mais no que está entorno dela. Entretanto, vale saudar os esforços da interpretação de Babu Santana, que consegue dar um mínimo de credibilidade ao espetáculo.

No mais, a experiência é não mais do que um reflexo daquele trecho de You Haven’t Done Nothing do Stevie Wonder: “we are amazed, but not amused”.  Infelizmente todo o rhythm and blues que as canções de Maia trouxeram para discografia nacional fica em segundo plano aqui, mas independente de um filme que tenta exprimir a obscuridade por trás da genialidade de um dos maiores cantores da música popular brasileira, ainda é necessário lembrar que seu valor consciente jamais será subestimado.   

Tim Maia (★★)
Brasil, 2014, 140 min.
De Mauro Lima
Com Cauã Reymond, Alinne Moraes, Babu Santana, Robson Nunes

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Oscar race e o filme mais belo de 2014

Esse final de semana o novo do David Ayer estreou em primeiro lugar nas bilheterias dos Estados Unidos. Boa parte do lucro se deve a Brad Pitt, claro, mas mesmo assim é bom ver um diretor refinado como Ayer sendo reconhecido pelo mercado. Esses dias saiu uma entrevista dele para um site britânico e não me surpreendeu a notícia de que ele viria a assumir uma superprodução em Hollywood. Fury já é um grande feito pelos seus 100 milhões de dólares de orçamento e a aparente liberdade autoral concedida à Ayer no manuseio dos fatos históricos. No entanto, não creio que seja um filme que irá cair nas graças da Academia (apesar de ele ser o escritor de Dia de Treinamento e Tempos de Violência – dois dos meus filmes policiais preferidos da década passada). Talvez, até, porque o novo do Eastwood tá quase saindo do forno. Fury e American Sniper, infelizmente, só chegam ano que vem aqui no Brasil, mas já vale reforçar a beleza de ver duas gerações de cineastas se encontrando numa mesma proposta em tempos não muito prolíficos para esse tipo de cinema. 
E já que irremediavelmente nos próximos meses o assunto mais falado (além do novo filme do Christopher Nolan e a primeira parte do final de Jogos Vorazes) vai ser o que pode ou não pintar nas indicações do Oscar 2015, alguns exemplares já estrearam ou tiveram sessões especiais por aqui. Garota Exemplar (Gone Girl) do David Fincher é um dos grandes filmes da temporada. E só pelo fato do Fincher ter sido tachado de misógino (o que ele não é!) eu já acho este o filme mais interessante que ele já fez desde... hmm, Seven.  Num ano em que o feminismo foi discutido, reinventado e banalizado no cinema como em muito tempo não se via, Garota Exemplar veio (re)afirmar Fincher como um visionário.  Mesmo o absorvendo mais como um ensaio fetichista-pessimista da deturpação do amor, é singela a homenagem do cara às femme-fatales que enriqueceram obras de diretores como Brian De Palma e Paul Verhoeven. E o que se viu em 2014, principalmente depois da experiência dilacerante da Scarlett Johansson (re)descobrindo sua feminilidade em Sob a Pele, foi que os (sub)gêneros de Hollywood nunca deram tanto vigor e substância às mulheres como agora. Uns grandes acertos (O Melhor Lance, do Tornatore), outros equívocos sem precedentes (Mulheres ao Ataque, do Cassavetes), o cinema esse ano teve um só corpo: e esse foi o da mulher. 
Outra coisa que vale ressaltar, e que sempre vejo muita gente falando por aí, é sobre o cinema argentino e suas incansáveis tentativas de se firmar como uma indústria irreverente. O filme candidato ao Oscar deles desse ano, Relatos Selvagens, é outra prova de que eles realmente se levam a sério. Pois eu, particularmente, lavo minhas mãos. Eu já acho um saco os discursinhos do Ricardo Darín sobre a “máquina de dinheiro” que é o cinema Hollywoodiano, mas vê-lo assumindo a pose reaça do Michael Douglas de Um Dia de Fúria num dos exercícios mais insuportáveis de black comedy desde sempre num dos curtas do filme do argentino Damián Szifrón, só me faz crer que Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, no fim das contas, é um pedaço de publicidade bem simpático.
Por fim, eu fiquei de escrever algo mais elaborado sobre os 12 anos das filmagens de Boyhood, que infelizmente vai ter estreia limitada no Brasil dia 30 de Outubro, mas vou resumidamente só dizer que esse é o filme mais lindo que alguém poderia fazer esse ano. Diluir o tempo através das experiências do protagonista aqui é mais do que um experimento sem precedentes, é uma forma de encontrar na imagem e no tempo do outro aquilo que reflete e exprime nossas próprias incertezas sobre esse ritual de passagem, principalmente para aqueles que, assim como o jovem Mason, ainda questionam sua moral nessa história que chamamos de vida.