quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

[Crítica] Tudo Por Um Furo


É um tanto estranho ver Will Farrell surgir em Tudo Por Um Furo tão seriamente confortável com a posição de coadjuvante de si mesmo. Quase sem referência ao legado deixado por O Âncora, a sequência da lenda de Ron Burgundy, o inconveniente âncora de um jornal local, parece assumir o humor como obrigação e a sátira como preenchimento de vácuo, num exercício narrativo que pouco faz jus a originalidade de McKay e Farrell quanto autores (por mais que gostaria de achar que tudo aqui é intencional) e que serve somente de afirmação do quão definitivo é O Âncora para o gênero. Partindo da premissa de que Tudo Por Um Furo compreende uma necessidade em conquistar a empatia dum (novo) público alvo, através de esquetes ágeis, sem se preocupar muito com o desenvolvimento particular dos personagens, essa versão empobrecida do original, na ideia da continuação da lenda de Ron Burgundy, sofre principalmente pela facilidade das piadas e a obviedade na qual a ação se desenvolve juntos delas, num estilo autoconsciente sem qualquer sutileza.


Se lá em O Âncora existia na forma e estilo com o qual McKay e elenco trabalhavam o humor goofy e o absurdismo a auto paródia e a sátira consistente de estereótipos categóricos, que Ferrell traçava com genialidade ímpar a cada ação inconsequente de Ron Burgundy, aqui parece que seu personagem é domesticado pelo pouco tempo de brilhantismo em cena. Repleto de coadjuvantes, que infelizmente acabam não ajudando em nada no argumento e são apenas alívios cômicos pro elenco principal usar como ferramenta de back-up, o humor se mune de piadas recicladas e incontáveis sequências onde Steve Carell faz uma versão fácil de seu personagem em esquetes pontuais ao lado de Kristin Wiig, que surge afetada de combinações de personagens seus do Saturday Night  Live, e que mesmo arrancando algumas risadas pela naturalidade com a qual conduzem tais cenas, não é nada que já não tenhamos visto antes. Levando em conta a expectativa do filme em relação a seus coadjuvantes e essencialmente a volta de Ron Burgundy e sua trupe, e o desapontamento  que é esta sequência, é importante salientar que Adam McKay continua sabendo controlar os excessos e o humor como ninguém, diluindo as cenas em texturas que elevam tanto o texto quanto os atores em posições quase imaculadas dentro do filme. Poucos diretores do clã-Apatow souberem compreender, experimentar e se divertir tanto com o ato de subversão ou a idealização de um mito emblemático como McKay, não sendo a toa que a parceria do diretor com Will Ferrell rendeu mais de uma década.


Mesmo que poucos momentos em Tudo Por Um Furo sejam tão geniais quanto se espera de Will Farrell, a engenhosidade do ator e a arquitetura de seu humor multifacetado, que oscila numa linha tênue entre ironia, paródia e sutileza, cabem sim a ser compreendidos aqui. E é no limite entre a irreverência e o autocontrole dos absurdos tão engenhosamente explorados pelo cinema de McKay e Ferrell que Tudo Por Um Furo, ainda que uma continuação decepcionante, continue sendo um grande filme da dupla.

Tudo Por Um Furo (★★★1/2)
Estados Unidos, 2013, 119 min.
De Adam McKay
Com Will Ferrell, Steve Carell, Paul Rudd, Christina Applegate, David Koechner



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

[Crítica] Katy B - Little Red


Acho sem sentido falar sobre revolução pop, já que o próprio gênero é revolucionário por excelência, mas se houve mesmo uma revolução pop na década passada, o disco que melhor reflete tal transição é o FutureSex/LoveSounds do Justin Timberlake. Primeiro porque Timberlake praticamente foi precursor da onda electropop que acometeu os anos sequentes do pop mainstream. Segundo, o disco é o pop em sua mais pura forma. Na época das especulações sobre o disco novo da Lady Gaga, o ArtPop, que acabou sendo uma decepção tremenda, muito se falava sobre uma nova revolução pop. Nessa artigo do Pedro Ascar para o Monkeybuzz, ainda que umas obviedades e equívocos tenham sido ditos, há uma linha de pensamento sobre o universo pop mainstream dos últimos anos bastante pertinente, que reflete muito no que as produções independentes de artistas como Grimes, Charli XCX, Sky Ferreira, Icona Pop ou AlunaGeorge –novo clã do pop pintado pela blogosfera alternativa e até mainstream- autointitulam ser pop, e que Katy B não faz muita questão de atestar em suas produções.


Conheci Katy B em meados de 2012, quando ouvi juntos pela primeira vez o On A Mission e o Danger EP, discos que são uma mistura do uk funky tradicional unido a batidas dubstep, muito electropop e reflexos vocais do r&b britânico, e que de forma muito direta quebraram as barreiras do que era quase um nicho pop europeu, ganhando as pistas de todo o planeta e abrindo portas para artistas como Disclosure e Jessie Ware, essa que vem mais na sombra do legado das soul divas pós-Amy Winehouse. Numa entrevista recente pro Alex MacPherson, Katy B fala das raízes que levam sua música ser tão universal e ao mesmo tempo muito própria. A economia das produções e as particularidades que compõem cada verso das canções de Katy B (“I need somebody to calm me down, a little lovin' like Valium”, ela canta em 5 A.M), quase crônicas de um lifestyle, encontram nas batidas de dance-pop a imagem necessária para construção de discos autênticos e sólidos como o On A Mission e seu novo trabalho, Little Red. E jogue a primeira pedra quem nunca foi pra uma balada e terminou a noite completamente bêbado, chorando ou refletindo sobre si mesmo né? O Little Red é justamente um reflexo de sentimentos (universais) sobre o desejo inconspícuo da vida noturna, que instiga e até machuca às vezes. E o grande trunfo de Katy B aqui está na facilidade com a qual ela e seu time de produtores (em especial Geeneus, produtor e amigo de longa data) têm para dissolverem batidas orgânicas. Da nostalgia de Crying For No Reason (quase um hino instantâneo e uma versão contemporânea de Like a Prayer da Madonna), ou o deep house de Aalyah, uma persona sobrenatural que rouba a atenção do namorado de Katy ao se portar de maneira mística numa pista de dança, até o eletrônico progressivo de Emotions, canção na qual ela proclama o desejo de sentir-se viva ao lado da pessoa amada. São sensações, que mesmo partindo dum clichê pop, são transformadas honestamente em matéria-prima das composições, e que me fazem refletir sobre como esse novo disco de Katy, assim como o FutureSex/LoveSounds do Timberlake, compartilham de elementos tão únicos do pop e seus efeitos imediatos, mesmo com propostas muito distintas. Timberlake tinha a ambição das batidas de Timbaland, que transformara seu disco num marco musical, mas Katy B se apóia tanto na sutileza das composições de suas canções, quase ingenuamente até, que faz ser inevitável não elevá-la como maior cronista de anedotas da música pop atual.  

Katy B - Little Red (★★★★1/2)
Rinse/Columbia/Sony, Inglaterra, 2014



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

[Crítica] 12 Anos de Escravidão


Enquanto acompanhava a densidade cênica de McQueen num desenvolvimento minucioso em relação à narrativa e a estética de 12 Anos de Escravidão só conseguia pensar em Strange Fruit e No Church In The Wild, duas canções moralmente políticas que de forma (in)direta acabam servindo como contraposição dos equívocos e acertos do filme de McQueen. Strange Fruit, canção poema de Abel Meeropol, que ficou conhecida na voz de Billie Holiday, sobre frutos estranhos (negros) presos a uma árvore com sangue em suas folhas é talvez a transposição anarquista mais assombrosa da escravidão e do racismo nos Estados Unidos em forma de linguagem. Particularmente, a versão que melhor remete ao filme em questão é a na voz de Nina Simone, cujos ecos e agressividade configurados à sua melancólica interpretação nos áureos anos 60 dá praticamente todo o tom e a atmosfera de terror em 12 Anos de Escravidão (também sendo o ponto mais alto do filme).


Steve McQueen possui notável habilidade para compactuar diversificados sentimentos em imagens a criar laços intensos com o espectador – já comprovado em Hunger e posteriormente no polêmico Shame. De certa forma, 12 Anos é uma continuação do argumento de Shame, na premissa que envolve os sentimentos morais do homem em relação a sua (falsa) liberdade e a reluta do instinto humano, mas sem a sensibilidade ou coesão do anterior. Solomon Northup é um homem livre cuja (falsa) liberdade lhe é roubada por 12 anos de escravidão, como o próprio título já reflete. Ao ser colocado em confronto com sua condição racial e de homem nobre de família, Solomon absorve a necessidade de sobrevivência e aos poucos se despe da (falsa) idealização de homem livre. De maneira a perpetuar o drama e a injustiça a qual Solomon se encontrara, o texto de John Ridley em parceria com a visão estética vigorosa de Steve McQueen parte da ideia que tais conflitos vivenciados por Solomon –e brilhantemente interpretados na personificação anêmica de Chiwetel Ejiofor– são justificáveis, uma vez que o mesmo era negro e livre. Nesse ponto pertinente da trama cabe a No Church In The Wild, parceria de Kanye West e Jay Z com Frank Ocean, interferir como argumento contrário à maneira como McQueen configura o drama de Solomon (ou Pratt), que não se faz num desenvolvimento natural, como o filme te faz crer nas inúmeras sequências de (auto)reflexão e desconforto no espectador, pois mesmo que ao fim da sessão Solomon seja transformado num mito assombroso da escravidão, em nenhum momento os efeitos estéticos hipnotizantes de McQueen revelaram os valores de sua condição racial ou, sobretudo, de sua condição de ser humano. E não que McQueen esteja sendo sádico, ou algo parecido, mas 12 Anos faz muita questão da cor de Solomon no desenvolvimento da tese sobre individualismo –que é também o ponto de partida de No Church In The Wild-, e ao legitimar tal problemática, colocando a moral e a liberdade numa balança, o diretor entra em conflito consigo mesmo, com medo de pender para um lado ou para o outro, levando a crer que qualquer valor sentimental cabível à 12 Anos, ao se projetar como um filme de terror moral e não como um melodrama histórico, seja a fim de impor, às inflexões de seu cinema, reflexões domesticadas ao espectador.



Não necessariamente decepcionante, já que estamos falando de um filme de terror por excelência, McQueen consegue driblar bem as falhas mais óbvias –a trilha sonora do defasado Hanz Zimmer sendo talvez o problema mais gritante-, mas 12 Anos parece ser um filme bem menos impactante após a sessão, principalmente por dar tanta importância à concepção de Solomon como homem livre e nobre (o que ele obviamente não era), e por mais sensato e violento que McQueen queira soar, seu senso narrativo dramático interfere aqui quase dicotomicamente a favor do empobrecimento das vísceras de 12 Anos. Não mais que um filme belamente dirigido e atuado (Lupita Nyong’o e Michael Fassbender contracenam as melhores cenas do filme), a idealização agressiva que acomete 12 Anos de Escravidão só se valida na imaginação da voz amarga e visceral de Nina Simone se fazendo corpo onipresente nos açoites à Solomon e na desconfiguração de sua dignidade humana - em imagens tão difíceis de digerir quanto refletir.

Estados Unidos/Inglaterra, 2013, 134 min.
De Steve McQueen
Com Chiwetel Ejiofor, Michael Fassbender, Lupita Nyong'o, Brad Pitt








quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

[Crítica] Ela


Não sei exatamente em que momento da sessão de Her o encantamento passou a ser decepção. Sempre fui fã dos trabalhos do Spike Jonze, pelo menos dos que eu vi não me recordo de nenhum que não tenha gostado. As peculiaridades dos personagens e a forma com a qual enfrentam seus conflitos existenciais e interpessoais sempre couberam quase perfeitamente nas análises sentimentais e honestas do diretor. Em Her, entretanto, ao criticar a quantificação de um sentimento e subverter a imagem do homem rústico dos romances alienados num personagem sentimental -e até feminino-, Jonze parece construir seu personagem, que não cabe em nenhuma definição, apenas para enfatizar toda a concepção (estética) que acomete seu filme.


Theodore Twomblver (Joaquin Phoenix), um solitário escritor fantasma num futuro distópico, após o rompimento de uma duradoura relação afetiva, se encontra num fluxo de tempo e espaço continuamente repetitivos, preenchido por vídeo-games interativos, salas de bate papo, canções melancólicas, imagens eróticas, enfim, por tudo aquilo que torna a vida de solitário menos depressivamente solitária. A comodidade que a tecnologia trás à vida de Theodore o leva a conhecer um sistema operacional, que passa a substituir sua difícil relação de intimidade com pessoas, o fazendo encontrar uma forma de estruturar o que havia desmoronado com o término de seu relacionamento, advinda duma voz feminina onipresente, que aparentemente o entende e carrega por ele o gosto pela vida (que não vive!). É muito visível toda a idealização do homem e sua facilidade em externalizar seus sentimentos pela tecnologia através da concepção futurística e melancólica de Her. Os prédios que cercam Theodore dão intensidade claustrofobica ao espaço em que habita, e as pessoas ao seu redor, todas sempre portando algum aparelho tecnológico, criam essa sensação de falta de simetria das relações interpessoais. É curioso observar, também, como o humor de Theodore, quando em contato com seu sistema operacional, Samantha (perfeito trabalho de voz e sincronia de Scarlett Johansson), oscila diversas vezes entre o otimismo da (re) construção do que fora perdido com a sensação de (falso) preenchimento do vazio existencial. Numa cena de orgasmo cibernético,  por exemplo, preenchida na tela completamente pelo preto, os sons transmitidos ecoam transpondo tanto sobre as sensações dos personagens quanto pelo ato em si, que mescla um sentido satírico de humor e horror melancólico consequente à cena (e também é uma evidência clara da transcendência do argumento à narrativa do filme)


Num artigo do Newstatesman, Her fora comparado curiosamente a Um Estranho No Lago, de Alain Guiraudie, filme interessantíssimo que esteve em Cannes ano passado, e mesmo sendo duas obras completamente diferentes uma da outra em suas conceituadas premissas, é assombroso observar como em ambas há um desenvolvimento de personagem voltado essencialmente para a necessidade de intimidade do ser humano e ao ponto que chegamos para consegui-la. No filme de Guiraudie, porém, há uma preocupação muito maior com a tênue que concerne o personagem e a estrutura do filme, como se, ao desenvolvimento do suspense, ele fosse descobrindo a si mesmo através das questões sociais e políticas colocadas à sua frente.  Já o que Jonze propõe com Theodore está expressamente na forma como o pessimismo acompanha sua vida solitária. Mesmo que todo o argumento se baseie na falsa perfeição dos relacionamentos (sejam eles cibernéticos ou interpessoais), por sempre buscarmos no outro aquilo que nós mesmos não possuímos ou temos controle, o filme de Jonze, em toda sua ingenuidade, acaba transformando Theodore num mero arquétipo afetado, não desenvolvendo em nenhum momento o sentimento que parecia querer ser culminado durante toda a trama. Nesse sentido, Her é também muito próximo de Onde Vivem Os Monstros, que buscava, através da imaginação, compreender o que levava um garoto em transição, mimado e egocêntrico, a encontrar a si mesmo quando ameaçado pela realidade. A semelhança entre Max e Theodore está justamente nesse conflito com a realidade, já que Theodore, mesmo externalizando seus sentimentos, tem medo de viver por achar que não tem mais chance de ser feliz, e Max, em pleno coming-of-age, acredita que ser criança o torna menos visível diante das pessoas ao seu redor.


Por mais que Her levante todas essas questões (e são muito válidas, por sinal), a ingenuidade –e mesmo infantilidade- que acomete boa parte do desenvolvimento subjetivo do argumento, às custas da melancolia de Theodore, Jonze, mesmo na mais honesta e singela das intenções, esquece que, antes de qualquer coisa, seu personagem é um ser humano, e não cabe apenas em ser difusão de conceito, esquema estético sentimental ou um mero arquétipo da silhueta de uma nova geração pré-destinada à autodestruição emocional. Estão aqui todos os elementos que transformam Theodore e Her em memória cinematográfica, mas nenhum deles é conquistado com a delicada naturalidade que se espera de um filme de Jonze. Infelizmente.

Ela (★★)
Estados Unidos, 2013, 126 min.
De Spike Jonze
Com Joaquin Phoenix, Amy Adams, Rooney Mara, Scarlett Johansson